Série de citações e menções feitas por Freud no texto “O mal-estar na cultura”, de 1930.
ROMAIN ROLLAND (1866-1944)
O texto “O Mal-estar na Cultura”, de Sigmund Freud, começa com a menção a uma troca de cartas com seu amigo Romain Rolland, que em 1915 havia ganho o Prêmio Nobel de Literatura. Novelista, poeta, biógrafo de personalidades como Beethoven e Gandhi, o escritor publicou em 1929 a biografia do líder religioso Ramakrishna Paramahamsa e no ano seguinte escreveu sobre a vida do místico indiano Swami Vivekananda. Freud alega não compartilhar com o amigo nem o gosto pela música, nem de seu interesse pela mística, mas um aspecto da carta captura a atenção de Freud.
Na carta, postada em 5 de dezembro de 1927, poucos anos antes das publicações sobre Ramakrishna e Vivekananda, e escrita como uma resposta ao texto “O Futuro de uma Ilusão”, o poeta faz um apelo à Freud: “Eu adoraria que o senhor fizesse uma análise do sentimento religioso espontâneo, ou, mais exatamente, da sensação religiosa que é […] o fato simples e direto da sensação do Eterno (que pode muito bem não ser eterno, mas simplesmente sem limites perceptíveis, como que oceânico)”.
Freud abre seu texto de 1930 justamente abordando essa espécie de sentimento oceânico que ele interpreta como “um sentimento de ligação indissolúvel e um pertencimento à totalidade do mundo exterior”, para Freud, um sentimento motivado pela condição inicial de nossa mente que não distingue nitidamente o Eu e seus limites.
CHRISTIAN DIETRICH GRABBE (1801-1836)
Freud traduz o “Sentimento Oceânico” de Romain Rolland como um profundo pertencimento ao mundo, como se fossemos uma gota, parte de um oceano, algo que ele ilustra com a frase do dramaturgo alemão Christian Grabbe, extraída do fim da tragédia Hannibal, em que o protagonista se conforma: “Com certeza não cairemos para fora deste mundo. Simplesmente estamos nele. Bebida!” [“Ja, aus der Welt werden wir nicht fallen. Wir sind einmal darin. – Trink!”].
JOHANN CHRISTOPH FRIEDRICH VON SCHILLER (1759-1805)
Interrogando-se, ainda, sobre o “Sentimento Oceânico”, Freud faz uma advertência. Após dizer que um amigo (provavelmente Frederick Eckstein) alegava que a prática de ioga o levava ao afastamento do mundo exterior ao mesmo tempo em que o implicava numa sensação de universalidade (oceânica, talvez), Freud pensa que poderia relacionar tais experiências místicas com algumas modificações da vida mental experimentadas também no transe e no êxtase – algo que confirmaria a hipótese psicanalítica de que no início o aparelho mental não encontra uma firme fronteira entre o Eu e o mundo externo.
Mas, nesse momento de reflexão sobre as experiências místicas de seus amigos, Freud se detém com um trecho do poema “O mergulhador” [Der Taucher], do poeta filósofo Schiller: “Que se alegre, aquele que aqui respira na rósea luz deste mundo! / Pois lá embaixo tudo é terrível, / Não deixe o Homem provocar os Deuses / E que ele nunca, jamais deseje ver, / o que eles graciosamente escondem com Noite e Terror”.
O poema, escrito em 1797, conta a história de um homem que, desafiado pelo rei, mergulhou num abismo do oceano para recuperar um cálice de ouro. O homem mergulha e retorna com o cálice – é quando profere a frase sobre a alegria de se respirar a rósea luz da superfície. Em seguida, o jovem narra as aventuras terríveis do abismo oceânico. O rei dá-lhe o prêmio e admirado com a coragem e com o relato do rapaz, faz um novo desafio: caso o mergulhador recuperasse o cálice uma segunda vez, ele ganharia a mão da princesa. O rei joga o cálice e o homem tenta a sorte novamente se lançando no abismo oceânico, mas dessa vez sem êxito no retorno. A citação de Freud é uma alerta para que ele próprio tenha cautela ao mergulhar nas águas do estudo psicológico de experiências místicas, sob o risco de se perder.
BRUNO GOETZ (1885-1954)
Uma história contada pelo poeta Bruno Goetz, que manteve relações com Freud, pode nos ajudar a compreender a citação que o psicanalista faz do poema “O mergulhador” [Der Taucher], de Schiller, no “Mal-estar na cultura”. Em seu escrito “Souvenirs sur Sigmund Freud”, Goetz revela que Freud já havia citado esse mesmo poema em uma conversa privada que eles travaram sobre o texto hindu Bhagavad-Gita por volta do ano de 1905.
Segundo Goetz, Freud se referia ao Bhagavad-Gita de forma respeitosa, mas advertiu o colega de que não se deve mergulhar num texto como esse “sem a ajuda de um espírito muito penetrante” e, já nessa ocasião, anos antes da escrita do “Mal-estar”, fez menção ao poema de Schiller, de onde ele retirou a frase “Que se alegre, aquele que aqui respira na rósea luz deste mundo!”. Com tal referência, Freud parece fazer um alerta sobre o perigo de perdermo-nos ao mergulharmos em temas místicos (principalmente sem a ajuda de um “espírito muito penetrante”).
JOHANN WOLFGANG VON GOETHE (1749-1832)
No segundo capítulo de “O mal-estar na cultura”, Freud prossegue em sua investigação sobre os fundamentos do sentimento religioso que ele vinha fazendo desde 1927, quando publicou o livro “O Futuro de uma ilusão”. Logo no início do capítulo, ele destaca como a vida é dura, com muitas possibilidades de sofrimentos advindos da natureza, do nosso corpo e das nossas relações sociais. Freud sublinha que a vida, com suas dores, misérias e desilusões, necessita de algumas medidas paliativas criadas pela cultura que amenizam essas dores.
Colocando a religião ao lado da ciência e da arte como tais medidas paliativas, o psicanalista cita um trecho do poema Zahme Xenien [Xênias mansas] de Goethe. Xênia é uma palavra grega que significa um presente dado a um hóspede, mas também uma espécie de poema. Em seu livro, Goethe publica uma série de poemas provocativos, entre eles uma Xênia que diz: “Quem possui ciência e arte / tem também religião; / Quem não possui nenhuma das duas; / que tenha religião!” [Wer wissenschaft und kunst besitzt hat auch religion wer jene beide nicht besitzt der habe religion].
Fernando Pessoa parece ser ainda mais didático na interpretação dessa frase e seu comentário sobre a Xênia de Goethe muito pode nos ajudar a entender a inserção dela em “O mal-estar na cultura”. Diz Pessoa em “Páginas Íntimas e de Auto-Interpretação”: “No fundo, a religião é uma forma rudimentar do sentimento da beleza. Toda a arte não passa de um ritual religioso. A frase profunda de Goethe – que pode dispensar a religião aquele que tem a ciência e a arte, mas não quem as não tem – tem, no fundo, esta significação muito simples: quem não pode ter uma arte superior, que tenha uma arte inferior. (Ou, propriamente, não será a religião a base indiferenciada da arte, da ciência e da moral?) É tão absurdo querer que o povo deixe de ter religião, como o é que ele deixe de ter amor aos espectáculos teatrais, que são as formas indiferenciadas da arte. A arte é insocial, a religião é a forma social da arte”.
Cada um ao seu modo, Goethe, Freud e Pessoa, parecem apontar para o lugar que a religião ocupa ao lado da ciência e da arte nas medidas paliativas criadas pela cultura para nos ajudar a atravessar a árdua vida.
THEODOR FONTANE (1819-1898)
Em “O mal-estar na cultura”, Freud ressalta a necessidade de os seres humanos recorrerem a algumas medidas paliativas para suportarem as dores e as misérias da existência. Para isso ele lança mão de uma expressão que o mestre do realismo alemão, Theodor Fontane, coloca na boca de um de seus personagens no romance “Effi Briest”, publicado em 1895.
O livro narra a história do casamento da jovem Effi com o oficial Geert Innstetten que, ocupado com sua carreira, não proporcionava uma vida empolgante a sua esposa na monótona cidade de Kessin. Anos mais tarde, já morando em Berlim e com uma vida familiar harmoniosa, Innstetten encontra cartas que denunciavam uma antiga aventura amorosa entre sua esposa e o major Crampas, ainda da época de Kessin. Movido mais por “dever de honra” e em defesa de sua carreira do que por sentimentos de ódio ou vingança, Innstetten mata em duelo o major Crampas e expulsa Effi de casa deixando-a totalmente desamparada.
Innstetten segue sua carreira burocrática subindo vários postos, mas extremamente infeliz. Em conversa com seu amigo Wüllersdorf, conta da sua solidão e tristeza e deixa escapar alguma ponta de arrependimento por sua reação que pôs fim à família – embora continue achando que tenha feito o correto em relação à honra e às obrigações sociais.
O amigo concorda que ele talvez nunca mais será feliz como foi nos dias do casamento, mas o consola apelando para sua carreira e dizendo que ele pode se distrair à noite com alguns balés e algumas canecas de cerveja. E, referindo-se a tais distrações, complementa que não podemos mesmo viver sem “estruturas de apoio” [Hilfskonstruktionen], frase que ouviu de um mestre de obras, que, portanto, devia saber do que estava falando.
Freud ressalta que a miséria humana exige mesmo tais “estruturas de apoio” (também traduzido por “construções auxiliares”) que nos ajudam a atravessar e suportar as dores da vida. Freud cita como estruturas de apoio, além das artes e das drogas – já presentes nas referências que Wüllersdorf faz ao balé e a cervejaria Siechen – a atividade científica e, também, a religião.
THEODOR FONTANE (1819-1898)
Em Effi Briest, mesmo romance de Fontane em que Freud foi buscar a expressão “construções auxiliares”, encontramos outra frase bastante impactante do ponto de vista da teoria freudiana do inconsciente.
Ainda morando na monótona cidade de Kessin, Innstetten, esposo da protagonista Effi, discute com um de seus vizinhos as atitudes de Luís Napoleão. O vizinho critica as atitudes de Napoleão III, mas Innstetten o defende perguntando: “Afinal, quem é senhor em sua própria casa?”.
Em “Uma dificuldade no caminho da psicanálise”, texto de 1917, Freud dirá algo muito semelhante ao ressaltar que as descobertas da psicanalise de que a nossa vida pulsional não pode ser inteiramente domada e de que os processos mentais são, em si, inconscientes, equivale a afirmação de que o Eu não é senhor em sua própria morada, querendo dizer com isso que nosso Eu é mais governado pelo inconsciente, ou pelo Id (Isso), do que por si próprio.
No romance de Fontane, Innstetten argumenta que quem governava a casa de Luís Napoleão não era ele, mas sua mulher: “ele não passava de um pedaço de cera nas mãos de sua esposa”. Talvez não seja absurdo imaginar Freud dizendo que o Eu não passa de um pedaço de cera nas mãos do inconsciente ou do Id.
HEINRICH CHRISTIAN WILHELM BUSCH (1832-1908)
Após resgatar a sugestão do escritor alemão Theodor Fontane de que não podemos passar pelas amarguras da vida sem algumas “construções auxiliares” (ou “estruturas de apoio”), Freud lança uma nota de rodapé lembrando que também o poeta Wilhelm Busch disse algo muito semelhante em “A piedosa Helena”.
“Die fromme Helene” é uma história ilustrada em forma de poema que lembra uma revista em quadrinhos. O poema conta a história de Helene, uma mulher que vivia com os tios e acabou sendo seduzida pelo primo Franz. Quando o primo voltou para o colégio ela lhe escreveu uma carta que foi descoberta pelos tios. A recomendação, então, é que Helene encontre algum “bom partido” para se casar e logo ela se torna esposa do senhor Schmöck, mas, infelizmente, os filhos não veem.
Ela parte para uma peregrinação para tentar reverter a infertilidade. Quem o acompanha é o velho primo Franz. Depois de rezas, penitências e peregrinações, o resultado vem e Helene engravida de gêmeos. No entanto, o poema deixa claro para o leitor que os filhos são a cara de Franz. O marido, depois, engasga com um osso de peixe e morre. Franz também é morto pelo ciumento criado Jean que o flagra cortejando a cozinheira.
A viúva Helene, agora, só tem um rosário, um livro de orações e o álcool para se apegar. Aflita, ela se sente tentada a beber e o autor justifica sua entrega à tentação com a frase que será pescada por Freud em “O mal-estar na cultura”: “É um costume desde os tempos antigos: quem tem preocupações, também tem licor!” [Es ist ein Brauch von alters her: Wer Sorgen hat, hat auch Likör!].
Ao beber, a tia falecida reaparece como assombração e Helene acaba provocando um acidente que põe fogo no ambiente e lhe tira a vida. O final do poema narra a luta do bom Gênio de Helene contra o espírito das trevas. O espírito do submundo leva a melhor e conduz a alma de Helene para o Inferno.
Com a citação de Busch, Freud reafirma o lugar que as substâncias entorpecentes frequentemente ocupam entre as “construções auxiliares” que recorremos para enfrentar os problemas da vida, algo já anunciado por Fontane quando diz que três canecas de cerveja nos acalmam.
FRANÇOIS-MARIE AROUET – VOLTAIRE (1694-1778)
Freud divide as medidas paliativas que usamos para suportar os sofrimentos da vida em três tipos: distrações poderosas, satisfações substitutivas e substâncias entorpecentes. Como exemplo de satisfações substitutivas, Freud cita a arte, entendendo-a como uma “ilusão” que substitui a realidade nos dando satisfações que essa nos nega. Sobre entorpecentes, a definição fala por si mesma e poderíamos citar as drogas em geral, lícitas ou não, incluindo várias espécies de fármacos. Mas é ao comentar sobre as “distrações poderosas”, que Freud recorre ao Cândido de Voltaire, dizendo que é algo dessa ordem que o filósofo visava ao aconselhar cada um cultivar o seu jardim.
“Cândido, ou o Otimismo” é um conto filosófico publicado em 1759, que narra a história do personagem-título que nasce em um castelo na Alemanha. Lá ele recebe aulas do filósofo Pangloss, estudioso de Leibnitz, e que convence Cândido de que vivemos no “melhor dos mundos possíveis”, já que o mundo foi criado por Deus. No entanto, já na abertura do conto Cândido é expulso do castelo por beijar Cunegundes, filha do barão. Encontra-se então entre os búlgaros e participa de uma guerra, depois reencontra seu preceptor Pangloss que lhe conta que o castelo foi invadido e muitos morreram. Eles vão para Lisboa e lá enfrentam um terremoto, depois são condenados pela Inquisição e quase morrem. Reencontram Cunegundes, mas depois a perdem novamente. Enfim, é uma sucessão de desgraças. Mesmo assim, Pangloss continua defendendo que o mundo é belo e bom, ao contrário de Martinho, amigo que fazem no trajeto, para quem o mundo só pode ter sido abandonado por Deus nas mãos de algum ser maléfico, já que para onde ele olhava só via dores e misérias.
No fim da trama, Cândido reencontra seu amor Cunegundes que com as mazelas da vida tornou-se feia e aborrecida. Ainda assim, honra o amor jurado e se casa com ela. Juntos, os personagens passam a trabalhar numa propriedade. Para Pangloss, os horrores que enfrentaram, da guerra à Inquisição, da morte de amigos ao terremoto em Lisboa, se encadearam no melhor dos mundos possíveis para que eles desfrutassem daquela tarde – afinal, sem toda aquelas dores eles não estariam ali comendo doce de cidra e pistache. Ao que Cândido responde: “Tudo isso está muito bem dito – mas devemos cultivar nosso jardim”.
Para Freud, o conselho final é para que mesmo diante de tantas desgraças nos distraiamos com o jardim que criamos. Poderia ser apenas um otimismo banal, mas Freud acrescenta também como uma distração a atividade científica e, pouco adiante, em nota, diz que o trabalho também pode substituir o jardim de Voltaire. Assim, o conselho do filósofo francês e as distrações poderosas de Freud parecem ser mais do que distrações, embarcando, portanto, desde o otimismo ridicularizado na figura de Pangloss, até as variadas formas de retirarmos algum saber de nossas desgraças. Nesse sentido, poderíamos dizer que a arte também funciona não apenas como ilusões para nos dar satisfações substitutivas, mas igualmente como uma distração poderosa que nos permite retirar luzes das nossas misérias.
JOHANN WOLFGANG VON GOETHE (1749-1832)
Após enfatizar que na vida experimentamos sofrimentos com muito mais frequência (e com muito menos esforço) do que prazeres, Freud acrescenta que um dos principais obstáculos à nossa felicidade é que em seu sentido mais restrito ela depende da satisfação de necessidades represadas.
Em outras palavras, a quem não falta saúde o bem-estar proveniente dela é quase que indiferente ou pouco celebrado, mas basta cairmos doente para logo reconhecermos o quanto a saúde participa de nossa felicidade. Daí o adágio tão frequente: “Eu era feliz e não sabia”. No entanto, mal nos reestabelecemos, já nos acostumamos novamente a saúde e talvez já não a entendemos como justificativa suficiente para nos sentirmos felizes.
Mais uma vez, então, Freud cita Goethe, apanhando uns versos do poema “Sprichwörtlich” [Literalmente]. No poema, Goethe profere uma série de frases como: “quem não pegar o cobertor, terá os pés descobertos”; ou “o tédio é uma erva ruim, mas se experimentamos um verdadeiro tormento, então desejamos o tédio”; ou, ainda, “não olhe tão feio para o espelho, o que esse pobre vidro fez com você?”. Enfim, o poema é uma lista longa de frases dirigidas ao leitor que soam como conselhos, advertências ou questionamentos sobre a vida.
O verso que Freud toma para o seu texto é um que sugere que tudo no mundo pode ser suportado, menos uma série de dias belos. Na íntegra: “Nada é mais difícil de suportar do que uma série de dias bonitos”. A frase vai bem ao encontro do pensamento freudiano de que a felicidade depende de um certo contraste nas disposições da vida. Mas, logo em seguida, Freud pondera a assertiva de seu poeta predileto: “Mesmo assim, isso pode ser um exagero”.
SÃO FRANCISCO DE ASSIS (1182-1226)
Desde o segundo capítulo de “O mal-estar na cultura” Freud apresenta o amor como um dos métodos usados pelos seres humanos para alcançarem uma cota de felicidade. O amor tem a vantagem de ser uma variação direta da principal e mais primordial experiência de satisfação: a satisfação da pulsão sexual. No entanto, buscar felicidade no amor tem o grande inconveniente de nos tornar muito dependentes de uma parcela do mundo exterior, ou seja, do objeto que amamos, que pode nos rejeitar ou nos expor a muitos sofrimentos.
Mesmo assim, o amor ocupa um lugar de destaque no caminho para a felicidade de muitas pessoas. E Freud salienta, ainda, como alguns poucos indivíduos conseguem encontrar felicidade no amor de uma forma um pouco mais segura ao não condicionarem sua felicidade à correspondência do objeto amado. Em outras palavras, essa escassa minoria consegue amar sem esperar ser correspondido, deslocando o valor de ser amado para o próprio amor, tornando menos importante o aceite do amado do que o próprio ato de amar. Para isso, contudo, elas dirigem seu amor não a uma pessoa específica, mas para todo o mundo.
Nesse sentido, o frade católico Giovanni di Pietro di Bernardone, conhecido como São Francisco de Assis, teria, segundo Freud, levado mais longe essa forma de amor. Em “Cântico das Criaturas”, por exemplo, ele estende a louvação a Deus a todas as suas criaturas, do Irmão Sol a Irmã Lua, do Frei Vento a Irmã Água, e, principalmente, a Irmã e mãe Terra. Seu amor foi traduzido também pela “Oração da paz”, que embora não seja de sua autoria, acabou a ele associada, não apenas por ter sido divulgada em Roma junto a uma estampa sua, mas, sobretudo, por traduzir sua forma de vida e seu estilo de amar, sendo hoje universalmente conhecida como “Oração de São Francisco”.
Freud não invalida o amor universal como método de busca pela felicidade, mas não vê nesse amor pelos seres humanos e pelo mundo a posição mais elevada à qual o ser humano pode chegar. Além de ser algo raro – e para muitas pessoas até mesmo impossível – um amor tão universal e sem escolha perde, aos olhos de Freud, parte de seu valor.
JOHN GALSWORTHY (1867-1933)
No quarto capítulo de “O mal-estar”, Freud elabora algumas hipóteses do surgimento da cultura e ressalta como a vida sexual foi ao longo do desenvolvimento humano tendo sua importância diminuída enquanto fonte de felicidade. Freud chega mesmo a falar da impressão de a sexualidade sofrer uma involução, tal como nossos dentes e pelos. Ele abre, aí, uma nota citando o conto “A macieira” [The Apple Tree], publicado pelo escritor britânico Galsworthy em 1916.
O conto narra a história de Frank Ashurt, que em viagem com a esposa para o carro diante de uma macieira onde há um túmulo. A visão da tal macieira leva Frank a uma série de recordações. Ele lembra de quando machucou o joelho em uma caminhada com o amigo Robert Garton. Eles procuraram auxílio em uma fazenda e foram abrigados por uma jovem chamada Megan e por sua família, simples e tradicional. O amigo precisou ir, mas Frank teve que ficar mais alguns dias até se recuperar e, nessa estadia, viveu um sensual amor com Megan. Os dois se entregaram ao amor embaixo da macieira e, apaixonado, Frank convidou a moça a ir com ele para Londres. Megan aceita arriscar sua reputação e sua vida familiar em nome do amor. Frank parte antes e prepara a ida de Megan. Mas, nesse ínterim, ele encontra um amigo que o apresenta a três irmãs e ali eles vivem dias agitados. Frank acaba abandonando a ideia de se casar com a camponesa simples e pensa que o que viveu com ela não ajusta muito bem a sua vida na cidade. Ele termina por se casar com Stella, a irmã mais velha desse amigo, que agora está lá com ele diante da macieira. Frank já havia ficado sabendo, tempos mais tarde, que Megan se matou e pediu para ser enterrada exatamente embaixo da árvore.
Para Freud, o conto de Galsworthy revela que “na vida do homem de cultura atual, não há mais nenhum espaço para o amor simples e natural de duas criaturas humanas”. Freud usa o conto, portanto, para indicar que outras atividades culturais (representadas na história pelas diversões da cidade) participam mais da busca pela felicidade do homem moderno do que o amor mais direto e carnal (representado pelo amor de Frank e Megan no campo).
Embora a nota de Freud e o conto de Galsworthy não abordem o amor apenas na dimensão sexual, não deixa de ser interessante mencionar aqui uma pesquisa feita entre 2000 e 2018 com adultos ingleses de diversas idades revelando que os jovens entrevistados têm praticado menos sexo do que os jovens de 20 anos atrás. A conclusão do estudo diz o seguinte: “A frequência do sexo declinou recentemente na Grã-Bretanha, mais marcadamente entre pessoas de meia-idade e entre pessoas casadas ou que dividem o mesmo lar” [Frequency of sex has declined recently in Britain, more markedly among those in early middle age and those who are married or cohabiting]. Pesquisa disponível no site: http://dx.doi.org/10.1136/bmj.l1525
JESUS DE NAZARÉ (7-2 a.C – 30-33 d.C)
O quinto capítulo de “O mal-estar na cultura” foi publicado separadamente em 1929 com o título “Amor ao próximo e pulsão de agressão”. Nele Freud comenta o mandamento cristão (mas que, como recorda Freud, remonta a períodos anteriores ao cristianismo) de amar o próximo como a si mesmo.
Freud considera o mandamento impossível e injusto com as pessoas que amamos, afinal, o amor é um valor da nossa preferência e colocar um estranho no mesmo patamar que as pessoas que amo é, para Freud, um contrassenso, principalmente quando muitas vezes o meu próximo não é merecedor do meu amor, por vezes, inclusive, querendo meu mal. Ainda assim, para maior espanto de Freud, um segundo mandamento, proferido por Jesus, inclui nesse amor, explicitamente, mesmo nossos inimigos.
No “Evangelho segundo Mateus”, após ser tentado pelo diabo, Jesus retorna pregando e convidando populares a segui-lo – entre eles estão Pedro, André, Tiago e João. Jesus se vê, então, rodeado por uma multidão e é quando, num ato que recorda simbolicamente os passos de Moisés, sobe em uma colina e profere o que ficou conhecido como “O Sermão da Montanha”. O discurso é revolucionário e contém apelos a uma contracultura, por vezes criticando ou subvertendo explicitamente algum princípio, dito ou mandamento dos antigos. Entre essas advertências, Jesus destaca o inusitado mandamento de amarmos nossos inimigos: “Ouvistes que foi dito: Amarás o teu próximo, e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, vos digo: Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam, e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” (Mateus 5:43-44)
Freud toma o mandamento como se o escutasse pela primeira vez e passa todo o capítulo analisando a tensão existente entre a recomendação do nazareno e a inclinação dos seres humanos à destruição, motivada, principalmente, pela Pulsão de Morte. No fim do capítulo, como veremos adiante, Freud acaba considerando o mandamento justificado precisamente por conta dessa inclinação à agressividade própria aos seres humanos (ver adiante nota sobre Alphonse Karr).
CHRISTIAN JOHANN HEINRICH HEINE (1797-1856)
Seguindo sua crítica ao mandamento que ordena o amor ao próximo, incluindo o inimigo, Freud argumenta que não apenas o outro nem sempre é merecedor de nosso amor, como também por vezes ele merece nossa hostilidade.
Freud, então, abre uma nota dizendo que os poetas podem autorizar-se a expressar, de maneira jocosa, algumas verdades psicológicas proibidas. E serve-se, então, das palavras de Heine, poeta romântico alemão, retiradas de seu livro “Pensamentos e ideias espontâneas” [Gedanken und Einfälle]. Em um capítulo em que reflete sobre sua vida pessoal, Heine fala da sua formação que o fez combinar o desejo pelas maçãs com o respeito à propriedade e com a aversão ao roubo. Pouco antes de falar de sua relação com o cristianismo, ele sublinha sua disposição pacífica que o faz desejar apenas uma cabana modesta, boa cama, boa comida, flores na janela e algumas belas árvores na frente de sua porta. Mas acrescenta que se Deus quiser mesmo o deixar feliz, deveria colocar nessas árvores alguns de seus principais inimigos enforcados (que, vale dizer, ele imediatamente perdoaria). O poeta acrescenta: “é verdade que temos de perdoar os nossos inimigos, mas não antes que sejam enforcados”.
Heine prossegue dizendo que não se pode amar seus inimigos sem antes vingá-los, já que acredita que só com a vingança conseguimos dissipar toda a amargura do nosso coração e, aí sim podemos nos abrir para os desafetos. Dessa forma sarcástica, o poeta coloca a falta da vingança como um obstáculo para que ele cumpra o mandamento bíblico. Freud se serve da ironia cruel do poeta para confirmar sua tese de que o mandamento que nos ordena amar nossos inimigos é paradoxal e absurdo.
https://www.projekt-gutenberg.org/heine/aphorism/chap001.html
JEAN-BAPTISTE ALPHONSE KARR (1808-1890)
Após falar de suas desconfianças ao mandamento que ordena que amemos nossos inimigos, Freud ressalta que seria mais intuitivo um mandamento que ordenasse que amassemos nosso próximo como ele nos ama. O psicanalista alega que um mandamento de amor incondicional poderia, no limite, premiar a maldade.
Relembrando um comentário do jornalista Alphonse Karr, Freud exemplifica de forma severa o que seria um princípio de amor que buscasse devolver ao próximo o que ele nos dirige. A menção é a um texto de Karr publicado na revista satírica “Les Guêpes” [As Vespas], sobre a “abolição da pena de morte em assuntos de políticas”, onde o autor diz: “Se quisermos abolir a pena de morte nesses casos, que os senhores assassinos comecem: se eles não matarem, nós não os mataremos”
Se notarmos bem, essa perspectiva acaba retomando, justamente, o princípio que Jesus criticou pouco antes de fazer seu apelo ao amor aos inimigos. Referindo-se à Lei de Talião, proveniente do Código de Hamurábi, Jesus pede a multidão que não aja assim: “Ouvistes que foi dito: Olho por olho, e dente por dente. Eu, porém, vos digo que não resistais ao mau; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra” (Mateus 5:38,44).
Para Freud, o que podemos aproveitar da anedota de Karr e de toda sua discussão é que o ser humano não tem uma natureza pacata que só agride quando atacado, mas que possui no fundo uma forte inclinação para a agressão que supomos no outro porque também a encontramos em nós mesmos. Curiosamente, após tantas críticas, é justamente o reconhecimento dessa pulsão agressiva que faz Freud considerar o mandamento de amor ao próximo como algo justificado, já que nada é tão contrário a natureza humana como esse amor. E, convenhamos, um mandamento só se justifica quando somos inclinados a desobedecê-los. Isso talvez explique também não haver um mandamento anterior que nos ordene a amar a nós mesmos, como bem observa Zygmunt Bauman ao analisar essa passagem do texto freudiano em “Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos”.
PLAUTO (254-184 A.C.)
HOBBES (1588-1679)
Enfatizando a forte inclinação do ser humano à agressão, inclinação que o mandamento de amar ao próximo tenta conter (e que a Lei de Talião, ao contrário, escancara), Freud lembra que o próximo é menos um provável aliado do que um provável agressor. Para Freud, percebemos que o próximo tem em si uma agressividade que pode se dirigir a nós. E tal percepção não se deve apenas aos atos do próximo, mas, principalmente, por reconhecermos em nós mesmos esse impulso.
Endossando esse pensamento, Freud pergunta quem seria capaz de contestar a máxima latina Homo homini lúpus [o homem é o lobo do homem] proferida pelo dramaturgo romano Plauto. A frase por vezes é atribuída ao filósofo inglês Thomas Hobbes que entende o estado de natureza humana como uma “guerra de todos contra todos”, conforme defendido em sua obra mais famosa “Leviatã”. No entanto, em “Leviatã”, publicado em 1651, Hobbes não faz nenhuma referência direta a frase de Plauto, embora já o houvesse feito no livro “Do Cidadão”, de 1642. De toda forma, a máxima traduz de maneira interessante a filosofia de Hobbes, para quem a cultura, a política e o Estado é quem pode tirar o homem dessa condição de “guerra de todos contra todos”.
A citação serve como argumento para Freud continuar a defender a existência de uma inclinação do homem à agressão e, em suas palavras quase hobbesianas: “hostilidade de um contra todos e de todos contra um”. A conclusão a que Freud chega é que resta à cultura a tarefa de conter esse perigoso impulso que, como prevê Freud, um dia pode fazer com que nos exterminemos uns aos outros. Digno de nota é observar que Freud escreve isso em 1930, pouco antes do partido nazista ter suas primeiras vitórias eleitorais expressivas.
PAULO DE TARSO (ca. 5 – 67)
Ainda no quinto capítulo de “O mal-estar”, Freud passa a interrogar os meios de que se serve a cultura e cada sujeito para lidar com a pulsão agressiva. Antes de falar do papel do Supereu como principal arma da cultura para conter o poder humano de destruição, Freud menciona um mecanismo mais simples que em “O tabu da virgindade”, texto de 1918, ele chamou de “narcisismo das pequenas diferenças”.
Tal mecanismo seria capaz de ligar um grande número de pessoas pelo amor, desde que restasse algum alvo externo ao grupo para onde pudesse ser dirigido o ódio. A pulsão agressiva que se voltaria para os membros do grupo é agora projetada para um objeto, muitas vezes em quase tudo semelhante ao próprio grupo, exceto por pequenas diferenças. Freud cita a hostilidade entre os espanhóis e os portugueses, alemães do norte e do sul, ingleses e escoceses e talvez pudéssemos incluir também os brasileiros e os argentinos. As pequenas diferenças em relação ao grupo externo acentuam as semelhanças entre os membros do grupo. Isso ajuda a esclarecer também o fato de que poucas coisas unem tanto as pessoas quanto o ódio a um alvo comum.
Além de lembrar o papel de bode expiatório dos judeus em muitos momentos da história, Freud lembra que quando o apóstolo Paulo fez do amor universal o fundamento da comunidade cristã, a intolerância com quem estava fora desse grupo aumentou. Ainda hoje é bastante comum alguns religiosos defenderem o mandamento do amor ao próximo – e talvez até amarem entre si – desde que haja um inimigo externo, por exemplo, uma outra religião, para onde possam direcionar sua agressão. Evidentemente, tal mecanismo nunca foi exclusividade da religião.
JOHANN CHRISTOPH FRIEDRICH VON SCHILLER (1759-1805)
Freud usa o sexto capítulo de “O mal-estar na cultura” para localizar o leitor em sua teoria pulsional, refazendo o caminho que o levou até o dualismo Pulsão de Vida e Pulsão de Morte do qual se serve no texto. Começa dizendo que partiu de uma distinção simples, quase intuitiva, de que as forças que agem no ser humano poderiam ser reduzidas a duas: um impulso por garantir sua sobrevivência (a pulsão de autoconservação) e um impulso que buscaria obter prazer (a pulsão sexual).
Desde 1905 Freud já vinha dizendo que foi buscar apoio para sua teoria no filósofo-poeta Schiller. Freud alude ao poema “Os sábios universais” [Die Weltweisen]. No poema Schiller tece comentários irônicos sobre a filosofia recuperando a distinção entre o saber pelos sentidos versus o saber pela lógica. Nele menciona importantes autores, como Homero, Locke, Descartes (os sábios universais) e termina dizendo que antes do mundo vincular-se à filosofia e por ela ser estudado, ele segue seu curso retirando suas forças da forme e do amor.
Freud identifica os versos finais do poema ao jogo pulsional que ele propõe, sendo a fome o representante da pulsão de autoconservação e o amor o representante da pulsão sexual. É essa primeira divisão que leva Freud a recorrer a Schiller e dizer que o amor e a fome movem o mundo.
Freud prossegue sua apresentação dizendo que em 1915 ainda propôs um segundo dualismo entre Pulsão do Eu e Pulsão Objetal, mas que tais definições diziam mais da direção da pulsão do que de sua natureza. Por fim, em 1920, ele finalmente propõe a divisão que o orientará no fim de “O mal-estar na cultura”: Pulsão de Vida e Pulsão de Morte.
Obs: Como aconteceu com outras passagens aqui não encontrei na internet uma tradução do poema em português nem localizei o livro em que foi publicado pela primeira vez. Em inglês ele recebeu o título “The World Ways” e pode ser encontrado facilmente na internet.
[So übt Natur die Mutterpflicht/ Und sorgt, daß nie die Kette bricht / Und daß der Reif nie springet. / Einstweilen, bis den Bau der Welt / Philosophie zusammenhält, / Erhält sie das Getriebe / Durch Hunger und durch Liebe].
JOHANN WOLFGANG VON GOETHE (1749-1832)
MARY BAKER EDDY (1821-1910)
Freud confessa que mesmo ele não recebeu muito bem a ideia de uma pulsão de destruição que fosse primária no aparelho psíquico. De fato, até 1920 Freud sempre leu a agressividade, dirigida para fora ou para si mesmo, como um desdobramento de outros impulsos, seja de sobrevivência, seja de busca pelo prazer.
Mas a partir de 1920 Freud destaca uma pulsão de destruição primária e a chama de Pulsão de Morte. Tendo a si mesmo como exemplo, Freud não se surpreende que as pessoas rejeitem essa ideia de uma agressão inerente e primária em todo ser humano e cita uma frase de Goethe: “as criancinhas não gostam de ouvir”.
A frase é retirada do poema “Balada”, de 1813, que começa com as crianças pedindo para que lhe narrem um conto de fadas e, à medida que o conto é narrado, todas as estrofes terminam com “As criancinhas gostam de ouvir” [Die Kinder, sie hören es gerne]. Apenas duas estrofes, mais para o final do poema, em passagens mais tensas, terminam com a frase “As criancinhas não gostam de ouvir” [Die Kinder, sie hörens nicht gerne].
Para Freud, muitas vezes tendemos a nos comportar como criancinhas que não gostam de ouvir os trechos mais duros do poema da vida, entre os quais ele inclui a Pulsão de Morte, negada por ele mesmo durante anos.
Aqui Freud faz também uma breve referência a Christian Science, igreja fundada nos E.U.A por Mary Baker Eddy. Ele alega que uma das dificuldades para reconhecer a inclinação inata do ser humano para o mal advém da crença que somos feitos a imagem e semelhança de um Deus exclusivamente bom. É quando diz que mesmo a Christian Science, com sua promessa de ciência, explica muito bem a presença do mal e que o Diabo também não é uma boa explicação para tal já que da mesma forma poderíamos cobrar de Deus explicações da existência do Diabo.
JOHANN WOLFGANG VON GOETHE (1749-1832)
Freud destaca que uma forma tradicional das pessoas lidarem com a parte mais desagradável da constituição humana é projetar ela para fora. Assim, acostumamos a supor o mal sempre longe de nós. Isso também acontece com a pulsão de morte e de destruição que nos habita. Tendemos a não reconhecê-la, afinal, se somos feitos à imagem e semelhança de Deus, não há lugar para a maldade. Para Freud, a própria figura do Diabo responde a isso, o mal não vem de Deus, nem de nós, mas do Diabo. E Freud completa: “Mas, mesmo assim: podemos, afinal, da mesma forma exigir de Deus explicações pela existência do Diabo, bem como pelo mal que ele encarna”.
Aproveitando-se da figura do Diabo como exemplo e encarnação de todo mal, Freud recorre novamente a Goethe, desta vez tirando uns versos do Fausto, poema trágico sobre a lenda alemã que conta o pacto feito entre um médico e Mefistófeles, espírito maligno aliado de Lúcifer.
Freud observa que nos versos do poeta o Diabo encarna exatamente esse impulso de destruição que ele chama de Pulsão de Morte. De forma tal que o inimigo do Diabo no poema não é o sagrado, mas a criação, a multiplicação e a vida, elementos presentes justamente no conceito freudiano de Pulsão de Vida que contrasta com a Pulsão de Morte. Freud nos lança então mais um pouco de Goethe, um dos poetas mais citados por ele: “Pois tudo o que nasce. / Merece perecer. / Assim, o que chamais de pecado, / destruição, em suma, o mal, / é o elemento aa mim adequado. (…) Do ar, da água, bem como da terra // Desprendem-se milhares de germes. / No seco, no úmido, no quente, no frio! / Se eu não tivesse reservado a chama para mim, / Eu não teria nada propriamente para mim”.
CHRISTIAN JOHANN HEINRICH HEINE (1797-1856)
Para Freud, a história da cultura e o desenvolvimento dos seres humanos pode ser descrito como uma luta entre o impulso de destruição, que visa retornar tudo ao estado inorgânico, e o impulso de criação que visa ligar os seres humanos em comunidades cada vez maiores e duradouras. Em suma, uma luta entre a Pulsão de Morte (Tânatos) e a Pulsão de Vida (Eros). Mas para o ser humano é difícil encarar essa disputa, principalmente por ter que reconhecer o impulso destrutivo da Pulsão de morte. Como criancinhas, os seres humanos não querem saber do lado mal da história e Freud ilustra isso com uma frase do poeta Heine retirada das primeiras estrofes de “Alemanha, um conto de inverno”, publicado em 1844.
O conto narra sua visita a Alemanha depois de 12 anos de exílio e não poupa duras críticas a terra natal. No início do poema ele conta que logo que chegou pôde ouvir a língua alemã e sentir seu coração sangrar deliciosamente ouvindo uma mulher tocar harpa e cantar com uma voz falsa histórias do céu, “do mundo melhor lá de cima, livre de todos os vícios”. Ela cantava uma antiga canção, “ A canção de ninar do Céu / Que embala o povo birrento / Criança que faz escarcéu”. O poeta prossegue, então, falando do desejo de compor uma outra canção, que erga aqui na Terra o Reino do Céu.
Para Freud, o que as babás querem aplacar com a cantiga de ninar sobre o céu é essa luta entre Tânatos e Eros que temos tanta dificuldade em reconhecer.
Cantava uma pequena harpista. / Com emoção verdadeira cantava, / E com voz falsa, mas ainda assim / Tocava-me o que ela cantava. / Cantava amores e dores, / Reencontros e sacrifícios, / No mundo melhor lá de cima / Livre de todos os vícios. / Cantava sobre este vale de lágrimas, / Sobre o prazer sem história, / Sobre o Além, onde a alma mergulha /Transfigurada em eterna glória. / Cantava antiga canção de renúncia, / A canção de ninar do Céu / Que embala o povo birrento / Criança que faz escarcéu. / Conheço a melodia, conheço a letra, / Conheço também os autores: / Quando em público dizem “água”, / Bebem vinho nos bastidores. /Uma nova canção, uma outra canção / Quero compor-lhe, amigo fiel! / Queremos aqui na Terra / Erguer o Reino do Céu. (Tradução: Romero Freitas)
HONORÉ DE BALZAC (1799-1850)
FRANÇOIS-RENÉ DE CHATEAUBRIAND (1768-1848)
JEAN-JACQUES ROUSSEAU (1712-1778)
Nos últimos capítulos de “O mal-estar na cultura” Freud discute os meios que a civilização usa para conter a pulsão de destruição do ser humano. Para ele, a cultura serve-se da culpa para que cada ser humano renuncie à agressão que o habita. Ele lembra que de início a culpa não é ainda uma função internalizada. A criança renuncia a uma pulsão por medo de ser punido por uma autoridade externa ou de perder o amor dela. Freud pede para lembrarmos do famoso mandarim de Rousseau.
Ele se refere, na verdade, a uma passagem de “O Pai Goriot”, de Balzac, que conta a história de um velho que vivia numa precária pensão enquanto sustentava as filhas na alta sociedade de Paris. Na mesma pensão morava o pobre estudante Eugênio que sonhava frequentar a elite. Outro colega de pensão, o sr. Vautrin, propõe ao estudante casar-se com Vitorina, filha de um pai rico que a rejeita em prol do filho homem. Vautrin diz que mataria o irmão de Vitorina de forma que toda a fortuna fosse parar nas mãos dela. Para isso, o estudante só precisava consentir e depois entregar duzentos mil francos a ele. Sem revelar a proposta, Eugênio pergunta ao seu amigo Bianchon se ele conhece o dilema de Rousseau em que ele pergunta ao leitor o que faria se pudesse enriquecer matando, apenas pela vontade, um velho mandarim na China. O amigo, depois de hesitações e gracejos, opta por manter o mandarim vivo e preservar sua consciência.
Acontece que na edição comentada do texto, Paulo Rónai diz que nunca foi encontrado tal dilema em Rousseau. Em toda sua pesquisa, o que ele encontrou de mais próximo veio de Chateaubriand, que escreve em “O gênio do cristianismo” (1802): “se tu pudesses, por um desejo apenas, matar um homem na China e herdar sua fortuna na Europa, tendo a certeza de que nada jamais seria conhecido, consentirias em executar esse desejo?”
Para Freud, de início, mataríamos o mandarim, desde que ninguém ficasse sabendo, mas, depois de internalizada em nós a lei do Supereu, passaríamos a temer uma autoridade interna que nos provocaria culpa. A culpa, sim, talvez salvasse o mandarim.
MARK TWAIN – SAMUEL LANGHORNE CLEMENS (1835-1910)
Ao abordar o problema da nossa consciência moral como uma das principais apostas da cultura para conter a pulsão agressiva, Freud argumenta que um infortúnio real pode agravar nossa culpa, já que o destino encarna, por vezes, a autoridade punitiva do Supereu. É como se nossa mente supusesse que o sofrimento pelo qual passamos fosse uma punição merecida e então ficássemos ainda pior.
Assim, uma pessoa que está com a consciência tranquila pode, ao se deparar com alguma desgraça, reconhecer suas faltas e, com elas, o merecimento daquele castigo. Para Freud, isso explica o fato de o povo de Israel, que se julgava predileto de Deus, não ter se revoltado com o criador ao se deparar com uma série de infortúnios, mas, antes, ter aumentado o sentimento de sua culpa criando nessa ocasião os preceitos mais rigorosos de sua religião.
Nessa passagem Freud insere uma nota comentando um conto que ele ouviu diretamente do comediante Mark Twain e que depois veio a ser publicado no livro “Dicas Úteis Para Uma Vida Fútil”. O conto, retirado de um discurso de 1902, faz parte de um capítulo que se chama “Os pais e a criança ética” e recebeu o título de “Sobre roubo e consciência”. Ele conta que roubou, quando criança, uma melancia de uma carroça, mas percebeu, em seguida, que se tratava de uma melancia verde, o que o fez logo sentir remorso. Devolveu, então, a melancia e perdoou o dono quando ele lhe deu uma melancia madura [Freud ouviu o mesmo caso, mas com melão].
O remorso, nesse caso, veio após o infortúnio de descobrir a fruta verde. Mas a verdade é que o caso não parece se ajustar tão bem ao argumento de Freud, já que aqui estamos, claramente, diante da ácida ironia de Twain, enquanto nos exemplos freudianos o infortúnio causa verdadeira dor e verdadeiro remorso. De toda forma, Freud não deixa de citar a piada, acrescentando ainda que na exposição Twain iniciava o caso dizendo que ia contar o primeiro roubo dele, para em seguida se perguntar: “Foi o primeiro?”, sugerindo com isso a existência de muitos outros.
JOHANN WOLFGANG VON GOETHE (1749-1832)
Mais uma vez Freud cita Goethe, como já dito, um dos autores mais citados em sua obra. Após destacar novamente que o sentimento de culpa cumpre uma função importante para a cultura, Freud defende que a culpa participa de forma ativa no conflito entre o indivíduo e a comunidade em que ele vive. De certa forma, a própria comunidade, a qual o indivíduo se filia para ter proteção, amor e felicidade, ela mesma é fonte geradora de nossas culpas, pois essas são também um instrumento seu.
Freud, então, louva a facilidade com que os poetas chegam a algumas verdades e conhecimentos profundos, tal qual Goethe alcançara em “Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister”, antecipando essa sua conclusão ao dizer: “Vocês nos conduzem para a vida, E deixam que o pobre se torne culpado, / Depois o abandonam ao tormento, / Pois toda culpa é vingada na terra”.
Wilhelm Meister é, no romance de Goethe, um jovem que se apaixona por uma atriz e se perde na paixão, chegando a abandonar a casa dos pais e se lançando em aventuras da vida até descobrir que é vigiado por uma sociedade secreta que o observa através de pessoas enviadas para manter relações com ele e ajudá-lo a desenvolver-se espiritualmente até estar pronto e maduro.
WILLIAM SHAKESPEARE (1564-1616)
Ainda insistindo que o sentimento de culpa é o problema mais importante do desenvolvimento da cultura, Freud relembra uma frase dita por Hamlet em uma das cenas mais famosas da tragédia de Shakespeare, publicada em 1603.
Na primeira cena do Terceiro Ato, o rei Cláudio e Polônio se escondem para avaliarem se a “loucura” de Hamlet se deve ao amor que sente por Ofélia. O príncipe entra no recinto e antes de encontrar sua noiva declama as famosas palavras: “Ser ou não ser… Eis a questão”. E prossegue sua reflexão sobre a vida perguntando se mais vale viver e suportar os “golpes do mundo” ou se não é melhor dar fim a sua existência, “morrer… dormir… talvez sonhar”. Ele conclui, então, que só suportamos as dores da vida por temermos algo após a morte. E expressa, finalmente, a frase que Freud foi recolher em sua boca: “Assim, a consciência torna todos nós covardes”.
Freud concorda com o príncipe da Dinamarca e termina por dizer que é a nossa culpa, essa consciência moral que, segundo Hamlet, torna todos covardes, que freia nossos impulsos mais hostis e, por isso, é também ela a principal arma da cultura para que essa não se dissolva através da força destrutiva que Freud chama de Pulsão de Morte.
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