Capa: ELEFANTE, foto Corbis. Lacan ressalta o lugar da palavra na psicanálise e sua função de fazer “a coisa estar não estando”. Por diversas vezes faz alusão à palavra elefante, dizendo que, por mais estreita que fosse a porta, poderia fazer entrar ali um elefante, bastando para isso fazer uso da palavra. Mostra ainda como poderia usar a palavra elefante para descrever uma girafa, desde que não houvesse contradição. Cita o filósofo Crísipo que disse que sempre que falamos carroça fazemos uma carroça passar por nossa boca. E cita também Santo Agostinho, que sugere que um leão sai da boca de quem fala leão. Por essas vias Lacan faz um elefante passar por sua boca e adentrar a sala, por mais estreita que fosse a porta. Na última aula do seminário ele distribui para os ouvintes figurinhas representando elefantes.
Retorno à Freud: “Artigos sobre Técnica” (1911 à 1915), “Traumdeutung” (1900), “Sobre o narcisismo: uma introdução” (1914).
Bases lacanianas: “O estádio do espelho como formador da função do eu” (1949), “Intervenção sobre a transferência” (1951), “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (1953), “Introdução ao comentário de Jean Hyppolite sobre a ‘Verneinung’ de Freud” (1954).
Resumo: Lacan se propõe nesse seminário a retomar os escritos técnicos de Freud e a criticar os rumos que a prática freudiana vêm tomando, sobretudo através da Psicologia do Eu, da análise das resistências ou da análise das defesas do eu. Para Lacan, a clínica que atua nessas direções não ultrapassa a dimensão do Imaginário, limitando-se a interpretações de “ego a ego” (p.49) que conduzem a uma “ortopedia do ego” (p.244). Todo o seminário é um esforço para distanciar a psicanálise dessas práticas e, assim, responder à pergunta inicial: “o que fazemos quando fazemos análise?” (p.19).
Para isso Lacan debruça-se sobre os conceitos freudianos de Resistência e Transferência e, já que a resistência tem sua sede no Eu, ele retoma suas discussões sobre o Eu iniciadas na comunicação de 1949 sobre o “Estádio do Espelho“. Através dessa reflexão, Lacan destaca a função imaginária do Eu, afirmando que o ego se manifesta na análise como defesa, recusa (p.75). E chega, então, a definir o Eu como o “sintoma humano por excelência” (p.27).
Para avançar em suas formulações sobre o Eu, Lacan, a exemplo do que faz Freud no capítulo 7 de “A interpretação do sonho“, recorre a um esquema óptico. Através do modelo óptico da experiência do buquê invertido, realizada pelo físico Henri Bouasse, Lacan avança sua teorização demonstrando que “o eu se constitui em relação ao outro” (.p.72), sempre numa experiência especular, de forma que “o sujeito se aliena tanto mais, quanto mais se afirma como eu” (p.73), já que “é pela mediação da imagem do outro que se produz na criança a assunção jubilatória de um domínio” (p.224). Em outras palavras, “a imagem da forma do outro é assumida pelo sujeito” (p.224) – como num reflexo no espelho. O esquema óptico de Bouasse ajuda ainda Lacan a situar o Eu em relação ao Imaginário, ao Simbólico e ao Real.
Ainda para pensar o Eu, Lacan recorre também à discussão freudiana sobre o narcisismo e propõe uma distinção entre o Eu Ideal (Ideal Ich) e o Ideal do Eu (Ich ideal). Passando do Eu Ideal para o Ideal do Eu Lacan vai progressivamente avançando da “Tópica do Imaginário” (título da aula de 24 de fevereiro) à “Ordem Simbólica” (título da aula de 9 de julho). Com isso, Lacan dá ênfase à participação da palavra no fenômeno da transferência, insistindo várias vezes que a experiência analítica não se baseia em uma relação dual, intersubjetiva, entre analista e analisando (de ego a ego), mas sim numa relação a três, cujo terceiro elemento é a palavra, já que ela é que faz a “mediação entre o sujeito e o outro” (p.69).
Sublinhando a importância da palavra na experiência analítica e na Transferência, Lacan relembra que o primeiro uso que Freud fez da palavra transferência (Übertragung), ainda na “Interpretação dos Sonhos” (1900), foi para se referir a um fenômeno de palavra, mais do que à relação entre analista e analisando.
Afim de enriquecer seu estudo sobre a palavra e sobre o lugar dela na experiência analítica e na transferência, Lacan recorre às reflexões de Santo Agostinho no livro “De Magistro” (O mestre). Santo Agostinho, através de um diálogo com seu filho sobre o ensino, acaba tocando de perto o objeto dos linguistas e produzindo um saber sofisticado sobre os signos. Lacan demonstra, a partir do filósofo de Hipona, que toda significação nos remete a outra significação e que o sujeito, “mesmo que nos diz algo, muitas vezes não sabe o que nos diz, e nos diz mais ou menos que ele quer dizer” (p.338). Lacan dirá, então, que é nesse encadeamento de significação a significação, no mais e no menos que é dito pela palavra, que devemos situar a transferência e que, “a análise é, enquanto tal, uma técnica da palavra” (p.340). Daí Lacan insistir em “que não se pode dar conta da transferência como de uma relação dual, imaginária, e que o motor do seu progresso é a palavra” (p.339). Daí Lacan valorizar a experiência do erro, da equivocação e da ambiguidade da palavra.
Com o debate sobre a palavra Lacan alcança também o debate sobre a Verdade, já que é a palavra que “introduz no real a dimensão da verdade” (p.342). Verdade que faz sua irrupção na análise entre o erro e a mentira – via equivocação. Através da associação livre a psicanálise suspende qualquer lei de contradição, portanto, qualquer erro. E, assim, através de um jogo entre a Palavra Vazia e a Palavra Plena, a experiência analítica faz surgir o que Lacan chama no seminário de “Palavra Autêntica“. A Palavra Autêntica ultrapassa o sujeito e se encontra assim para além do discurso, colocando-o sempre em marcha, enquanto o recalque interrompe o discurso: “cada vez que há recalque (…) há sempre interrupção do discurso“. Afinal, Lacan já havia dito antes que a experiência analítica trata de “desfazer as amarras da palavra” (p.239), introduzindo na relação especular do sujeito uma certa desinserção, uma flutuação, oscilações que completam e descompletam a imagem do seu eu (239).
Lacan termina o seminário discutindo sobre as três paixões fundamentais da experiência humana: o amor, situado na junção do simbólico e do imaginário; o ódio, situado na junção do imaginário e do real; e a ignorância, situada na junção do real e do simbólico. Situa, então, a experiência analítica no campo da ignorância, dizendo que “se o sujeito se engaja na pesquisa da verdade como tal, é porque se situa na dimensão da ignorância” (p.361). Lacan localiza na ignorância a abertura à transferência (o que de certo modo nos prepara para o Sujeito Suposto Saber melhor desenvolvido no Seminário 8). Mas Lacan nos lembra que também o analista deve considerar a ignorância, a ignorantia docta, que não é uma ignorância sábia, mas uma ignorância formal.
Embora tenha insistido na dimensão simbólica da transferência através do lugar da palavra na experiência analítica, Lacan reconhece uma função imaginária da transferência, “porque ela [a função imaginária] está presente em todo lugar, e, em particular, quando se trata de identificação (…) observemos a esse respeito que a função do imaginário está em jogo no comportamento de todo par animal” (p.366). A transferência, portanto, motor e resistência da análise, só é compreendida na “dialética do imaginário e do simbólico” (p.370). No entanto, ainda que reconheça a presença da função imaginária na transferência, Lacan insiste em afastar a psicanálise da Psicologia do Eu e da análise das resistências, porque na psicanálise não se trata de retirar as defesas do eu, mas de analisar o caráter simbólico delas, descobrindo “pontos que, na história do sujeito, não foram integrados, assumidos, mas sim recalcados” (p.368). Lacan fecha a última aula enfatizando a importância do tempo na análise e dizendo que “a transferência é o conceito mesmo da análise” (p.372). Ainda na finalização de seu discurso, responde a uma pergunta sobre o obsessivo e sua relação com o mestre, ao que encerra destacando o tempo que o obsessivo, em sua condição de escravo, necessita: “porque ele está bem contente em ser escravo, como todo mundo” (p.373). No final Lacan distribui figurinhas representando elefantes, insistindo, assim, que, por mais estreita que seja a porta, ele pode fazer passar um elefante, com o uso da palavra (ou das figurinhas).
Referências Transversais:
- “A psicologia do ego e o problema da adaptação” (Heinz Hartmann, 1969) – Lacan fará uma grande crítica à Psicologia do Ego de Hartmann, dizendo que ela não ultrapassa a dimensão imaginária ficando apenas na relação dual, sem dar a devida importância para a palavra.
- “Figures de la pensée philosophique” (Jean Hyppolite, 1971) – Na Aula 5 (10 de fevereiro de 1954) Lacan solicita que Hyppolite comente a tradução do termo Verneinung de Freud. Seu comentário será publicado mais tarde nos Escritos, de Lacan, e em 71 no livro “Figures de la pensée philosophique”, do próprio Hyppolite.
- “O Ego e os Mecanismos de Defesa” (Anna Freud, 1936) – Na Aula 6 (17 de fevereiro de 1954) Lacan faz um comentário sobre um caso clínico de Anna Freud e o lugar que ela reserva às defesas do eu.
- “A importância da formação de símbolos no desenvolvimento do ego” (Melanie Klein, 1930) – Na mesma Aula 6, após comentar o caso de Anna Freud, Lacan comenta o caso Dick, de Klein.
- O caso dos homem dos miolos frescos (Ernest Kris) – Lacan comenta o caso clínico de Kris, conhecido como o “homem dos miolos frescos”.
- A experiência do buquê invertido (H. Bouasse) – Lacan usa a experiencia de Bouasse para forjar um esquema óptico que nos ajudasse a compreender sua teoria da função imaginária do eu.
- “Teoria del lenguaje” (Karl Bühler, 1934) – Na Aula 7 (24 de fevereiro de 1954), Lacan faz um breve comentário sobre enunciado e enunciação, distinção que terá importância também em outros momentos de sua obra.
- “O lobo! O lobo! Um caso de Rosine Lefort, orientada por Lacan” (Rosine Lefort) – Lacan solicita Rosine Lefort para narrar o caso do menino lobo e o comenta.
- “Primary love and psycho-analytic technique” (Michael Balint, 1952) – Lacan, embora elogie o livro de Balint, critica sua teoria sobre o amor primário ocupando três de suas aulas ( aulas 16, 17 e 18) para comentar a obra do psicanalista húngaro.
- “A verdade da certeza de si mesmo” (Hegel, 1807) – Lacan faz alguns comentários sobre a dialética do Mestre e do Escravo proposta por Hegel no quarto capítulo da “Fenomenologia do Espírito”. Dialética que retornará muitas vezes em sua obra, sobretudo no Seminário 17.
- “De Magistro” (Santo Agostinho, 389 d.C.) – Na aula 20 (De locutionis significatione, de 23 de junho de 1954), Lacan solicita ao Padre Beirnaert que apresente o diálogo entre Agostinho de Hipona e seu filho Adeodato sobre o ensino e a palavra. Do diálogo, Lacar retira considerações importantes sobre a linguística e destaca a função da palavra na experiência analítica, colocando-a de vez no campo do simbólico.
- Experiência do tapa em crianças (Suzan Isaac) – Lacan retoma uma experiência de Suzan Isaac que demonstra que crianças entre 8 e 12 meses já distinguem um tapa acidental de um tapa punitivo, o que revela que muito cedo o simbólico faz sua presença na vida humana (não consegui localizar a publicação dessa experiência)
LACAN, Jacques. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud, 1953-1954; texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; [versão brasileira de Betty Milan]. – 2 ed., Rio de Janeiro: Zahar, 2009.
Via Beto Oliveira (@beto.liveira)
Obrigada, Beto!!!
Por nada. Agradeço o retorno. Abraços.